sexta-feira, 23 de março de 2012

Tudo pulsa



Aquele que escreve é também aquele que é escrito
A potência de nadar no tempo
A existência de sentir o fio
A querência de brotar no acaso
Continua inventar o instante continuo
Mantenho os meus sentidos alertas, desperto
Imagino um mundo que não acaba, destaco
e não acontecerá mais coisa alguma
que não se possa inventar
e não esqueceremos absolutamente o que se pode esquecer
e não poderemos ficar parados diante deste imenso centro sol
as mudanças são encontros de mundos que se movem
tudo pulsa
é necessário fazer missas intermináveis, cruzar linhas infindáveis
tecer sonhos inimagináveis
é necessário cozer a roupa e parte o dia da noite
a luva que colhe o pavio do sol
a calça que cobre o rubro do céu
é necessário criar no peito o grito
o grito para alinhar os fios
o grito frio do calor que queima
o grito que pulsa de todos os gritos, de todas as paixões, de todos os anseios, de todas as medidas, o grito de todos, todos, os que traem, os que sujam, os que mudam, os que lutam, os que secam, os que escapam, os que traçam, os que podem, os que partem, os que primam, os que saem, os que sentem, os que gozam
é necessário devorar leão
ser leão
ter a juba leão
correr na pata leão
rugir leão
quando rugi leão, cheirar como cheira leão
atacar leão, atacar leão
gritar
uma supernova a cada minuto
o amor brilha.

ERICSON PIRES

sexta-feira, 16 de março de 2012

Avante

Ela despe, ele veste, corpos secos, custou. Cortes nas veias, falta de ar, noites, sangue, seiva, sono, vertigem. Transtorno e tempestade. Deserto e areia, não se vê. A finitude lança a sua estrela. Uma música de fundo azul. Um sorriso no canto da boca. O tempo é pouco para amanhecer. Silêncio rascante, ação desordenada, triste a tristeza do ser, funda a tristeza do ser, dói o amor. Alma, sonho, descanso, tudo contorce. Nada a dizer que não seja este ponto final com um fio de saudade. Ele some no horizonte. Ela deita no poente. É uma despedida. Os olhos água. A cor não brilha. A vida parece errada. Sombra mareia a caminhada e o nascimento de um filho. O parto é lento. O braço rompe um sopro de esperança. É uma mãe esta mulher. O leite escorre consolando a fome. O ventre volta ajustando o corpo. Ela já pode viver.

Respira larga e livre
Justa com sua vontade
Venta vestido novo
Nave de si.

quinta-feira, 15 de março de 2012

Transmutação

Quando penso
que o aperto
vai matar o peito,
o nó virá laço
e eu borboleta.

terça-feira, 13 de março de 2012

Submersa

No peito
flechas de silêncio
viram lágrimas de agonia.
Uma flor insinua nascer
mas não há ar na superfície.
Quisera voltar no tempo
atravessar o tempo
sair dali.
Ondas de um mar descontrolado
devastam corpo, alma e sonhos.

sábado, 10 de março de 2012

Da violência do abandono

Saiu, bebeu, comeu, fumou
desejava sentir, desejava vencer, desejava ser salva.
Desejava acordar de manhã com um homem lhe trazendo o café.
Desejava amar este homem e lhe fazer café.
Desejava de novo e sempre e velozmente
que nada se rompesse
que nada lhe rasgasse
que o peito permanecesse intacto aos tapas, tiros e perfurações.
Desejava tudo e desejava nada.
Traia, batia, xingava
era culpada, culpada,
CULPADA!
Pelo desejo violada, violentada, estuprada,
engravidava e paria um filho
que morria
a cada manhã.

quinta-feira, 8 de março de 2012

Navegação

Turbulência forte nas águas,
Constrição.
Minha boca quer vencer e fica rígida.
Deita-te, 
relaxa,
deixa o fio te levar desde as margens.
Quando nego ergue-se ainda mais margem:
uma casca que não se descasca,
mas quebra espalhando estilhaços.
Quando aceito o rio corre
o tempo vive
e eu escrevo.

quarta-feira, 7 de março de 2012

Solidificação

Era cedo? Era tarde?
Era só sentimento.
Tempo é o trabalho de transformar
água em cimento.

terça-feira, 6 de março de 2012

Sagração

Os dois ajoelhados
peito de fronte um para o outro
respiração.
Nenhum músculo na face move
quando dizem olhos fundos:
Eu te amo. Eu te amo.
Sem rastro de som ou desejo
deitam-se alma vazia
até de manhã.

segunda-feira, 5 de março de 2012

"O esplendor da manhã não se abre com faca"*

Hoje é segunda depois da tempestade
cheiro de chuva no mato
sol raiando sem pressa
flores mais vivas.
Os pássaros cantam rastreando a manhã
o primeiro homem da terra vai começar a arar.
Tudo é calmo e respeita a natureza.
Ela se recompõe de sua fúria, que também é a sua natureza.
A digestão
nutrição e excreto.
No corpo só que ele precisa:
afeto.

*Manoel de Barros, teu brinquedo batizou o meu poema. Com licença de brincar.

sábado, 3 de março de 2012

Pulos de frente pro mar

Menina eu tinha os olhos puxados
os dentes pra frente
os cabelos rente ao couro,
encaracolados.
Menina eu tinha a vida toda pela frente
mas não sabia disso.
Acontecimentos eram curtos
desejos eram corpo
eram agora
já.
Hoje com cabelos e dentes cuidados
olhos pintados
e ideia de futuro
as causas parecem mais longas que os caminhos podem arquitetar.
Aperto no peito.
Saudade daquela menina
que pulava ondas olhando pro mar.