segunda-feira, 28 de junho de 2010

Vivendo a vida, ensaiando a morte

Sally é minha avó não por força hereditária, mas porque seu filho tornou-se o meu outro pai quando eu era ainda menina. Uma avó que não veio pronta, dizem as histórias que eu escuto. Foi preciso tecer o fio genealógico com o tempo. Mas lembro firme que, no dia do meu casamento, a nossa linhagem já estava certa, estampada no seu sorriso, na sua maquiagem.

Certa vez, não faz muito, levei Sally comigo para Parati. Era feira de literatura, grande festa que há por lá. Caminhamos por entre as pedras. Tomamos cachaça. Ouvimos o que se passa na imaginação dos escritores. Fazia graça encontrar os amigos na sua companhia, porque ela é engraçada mesmo. Logo se enturma, dá os seus conselhos, mas com enorme discrição. É uma presença delicada, que nos chega pelo coração.

Outro dia ouvi desta avó a seguinte lição: “A gente deve se integrar a vida. Eu tive os meus percalços, mas sempre desejei ser feliz. E fui.” Entendi o que já tinha entendido: que ela agora se doa por nada. Profere ensinamentos como que vai deixando um pouco de si nos nossos sentimentos.

Ontem, regada de vinho, ela ensaiava morrer. “Eu vou me sentar, sentirei a morte vindo pelo meu corpo e a deixarei entrar, tomar conta de mim. Toda relaxo para ir. Lá chegando, no outro plano, serei recebida por muitos amigos. A primeira pessoa que encontrarei será o meu amado marido”. Representou com o seu corpo ao modo de quem bem entende o ciclo. O que poderia parecer macabro, veio em largas risadas comigo.

Às vezes peço que ela venha ficar com meu filho: uma alegria para mim e para os dois. Casa cheia das histórias que eles criam. Eu colho estes frutos depois.

A canja que ela sempre fez foi o meu único alimento possível na gravidez.

Assistimos juntas ao jogo da copa na arquibancada de plantas no quintal da minha mãe. Meu filho alisava sua pele marcada por 82 anos de memória feliz. As veias já saltando enquanto ela explicava que aquelas eram as provas de uma vida transitória, que terá lindos caminhos astrais. Ela sabe que o planeta humano é apenas parte dos trajetos universais.

Uma mulher precisa vestir-se de si” - é a frase que eu intuía há alguns dias e que agora encontrou o seu lugar na velhice-criança que ela tem. Sally ensaiava a morte como quem autoriza a própria partida, por bem ter vivido a vida. Na minha lembrança, antes de ir, ela se deixa de herança. Amém.

21 comentários:

  1. Começar o dia com essa leitura já faz muita diferença. Parabéns, adorei. Fico sempre atônita ao ver como as palavras brotam do seu coração e a simbiose perfeita que elas traduzem. Não vi a cena, mas conhecendo um pouco da Sally, acho que corresponde a mais pura verdade na sua expressão de bem viver e amar; fez juz a sua intuição: "uma mulher precisa vestir-se de si". Beijos tia Marcia

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  2. Fiquei emocinada ao ver a Sally emocionada quando recebeu de você um papel. Nem consegui ler, por estar sem os óculos, mas já sabia que, para arrancar lágrimas da minha sogra havia sido algo muito, mas muito especial. Mais tarde veio a confirmação com a sua fala. Como sempre, além de colocar os sentimentos em palavras com maestria, ao falar suas poesias, sua emoção dá um toque mais do que especial. Fico feliz de cuidar deste quintal onde tantas coisas boas acontecem. Te admiro, filha.

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  3. fiquei muito prosa pelo que falou de mim na poesia, vejo que alguma coisa de bom realizei que foi ser seu 2ª pai. estou muito orgulhoso
    beijos

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  4. Amei. Que minha mente se encha dessa sabedoria.
    beijos

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  5. “Uma mulher precisa vestir-se de si”.

    Que verdade! Serve pra nós homens também né rs.

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  6. Querida, um lindo depoimento e uma linda homenagem. Amei!
    Me emocionei, neste momento em que meu avô ensaia partir, o corpo todo pifando, cansado de seus 94 anos. Sempre lúcido e ativo, no último ano diminuiu o ritmo gradativamente e nas últimas semanas, foi parando. Está internado, ainda lúcido, mas coração lento, respiração lenta, pressão lenta (ou baixa demais). Parece que se vai aos poucos. Não torço para que fique, seria egoísmo. Peço a Deus que não sofra, apenas.
    Mas enfim, o que me fez me emocionar foram suas palavras lindas, seu jeito delicado de contar uma história.
    O fato do meu avô estar mais frágil, só me fez ficar pensando um pouco nesta coisa da construção dessa relação que vc citou, que embora no nosso caso seja de sangue, se deu muito mais tarde, quando eu já era uma adulta.
    Talvez eu conte esta história lá no blog...
    Obrigada por me fazer pensar e me emocionar!
    Beijos.

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  7. Lindo, Carla e linda Sally. Vou adotar a frase um tantinho, vestir-me dela e da sabedoria de vó intuída por você, vivida por ela.
    Beijos e saudades!

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  8. Queridos amigos, leitores, familia,
    É gostoso ver que este tema tenha encantado a todos vcs, assim como me encantou.
    Viva a poética do cotidiano da vida.
    Dani Torres, sua reflexão me emocionou!
    Éverton - vale pra homens e mulheres, claro!
    Beijos a todos, Carla

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  9. Como diria a vovó... que coisa linda, coisa maravilhoooosa! hahahahaha
    Adorei

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  10. Carla, minha querida, esse texto é sobre a sua vó, mas é certo que emociona qualquer um, é lindo, é puro, é a vida valendo a pena, sendo como eu gosto que ela seja: bo-ni-ta!

    "É uma presença delicada, que nos chega pelo coração."
    Isso sim deveria ser nossa missão diaria, né não?!
    mtos bjos
    amo estar aqui!

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  11. Carla,
    Não conheço você nem sua avó, mas o texto casou lindamente com tantas histórias de mulheres incríveis como vocês.
    O texto é delicado e feminino...
    Comecei, confesso, lendo por não ter o que fazer, só por ler...
    Depois me emocionei e fui derretendo com suas palavras...Existe ternura em cada letra!
    Sempre muito bom encontrar o melhor de nós em outros textos!
    PARABÉNS!
    Aline Morais Farias
    Blog: Periódico Subversivo
    http://alinemoraisfarias.blogspot.com/

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  12. Que sutil. Ou como escrevem em Portugal: subtil!

    Festejemos Sally.
    Sigamos os conselhos de Sally!

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  13. Fer, obrigada por ter espalhado a notícia no facebook! Coisa maravilhosa... é ótimo!

    Ei Aline, gostoso quando um texto nos pega de surpresa, não? Gosto mto do que escreves tb!

    Karlinha, karlinha, não me diga que aquelas considerações foram mesmo as finais...

    David, David, adoraria ouvir todas as minhas poesias ditas por vc!

    Beijokas a todos, Carla

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  14. Lindo texto, lindo ter avós velhinhos. Tenho ainda a minha avó, com 86 e meu avô com 84. Abraçá-los é como alisar o fio do tempo..
    abs Carla!
    @Luziata

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  15. Carla, eu ia escrever "LINDO, MAIS QUE LINDO!", no seu último post, mas vi que o 1o comentário da Isabella é: "DEMAIS, MAIS QUE DEMAIS!".

    Entao mudei: MAGNÍFICO, apenas, MAGNÍFICO!!!

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  16. Carla,
    Que bom ter feito contato com você via Facebook e partilhar dessa delicadeza e ternura por sua avó e pela vida! A leveza das suas palavras faz realmente a gente ver a beleza da vida!

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  17. Aff!!! Carla, estar em seu blog é trazer mar aos olhos, e sempre da maneira mais gostosa: a de deixar a maré rolar livremente com sentimento de prazer. Apaixonada que sou por minha avó e pelas marcas que o tempo deixa nessas pessoas que trazem à tona a eterna criança que nelas habita, lhe digo: UM TEXTO QUE ME PROVOCA, no melhor sentido da palavra.
    Respeito por Sally, respeito por todos aqueles que souberam viver, respeito pela sensibilidade das palavras... PARABÉNS!!!
    Mil beijos, Cris.

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  18. Grande Carla< Sou eu Damasceno, que te vi pequena, com Dany na Barriga de sua Mãe, portanto no nosso convívio participei de anos ao lado de vcs. Minha querida mulher Marilucedesde o primeiro contato com vc no dia do aniver do Sergio começou a apreciar suas poesias, e tem visitado seu Blog constantemente. Me orgulho de vc muito e te desejo muita alegria com seu filhote e que tudo siga conforme vc planejou para sua vida; SALLY realmente é um exemplo de vida e de ânimo para quem quer viver muito. Sempre a admirei pela sua perseverança em viver sempre alegre e feliz. Acho que o meu convivio com a Família foi muito produtivo, pois tenho certeza que sua Mãe é uma líder em ter uma família unida e coesa, o que demonstra o resultado que hoje vc está mostrando em seus depoimentos no blog.
    Te desejo felicidades e sucesso e se quiser um ombro amigo tenha certeza que estaremos aqui para te ouvir.
    Um grande bj
    Damasceno

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  19. Uau!!! Sempre que estou precisando ouvir algumas palavras amigas, venho aqui me deliciar com suas palavras. Desta vez, para começar meu dia com novas energias, vim até aqui conferir as novidades. E me deparei com este texto e posso dizer que meu dia começou muito bem! Estou com um nó na garganta, é verdade, mas pensativa (de um modo positivo) dos ensinamentos e emoções trasmitidas por suas palavras e ditos da Sally.
    Beijos,

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